Julho 14 2010

Escrito há mais de 40 anos, A Mão Esquerda das Trevas continua a ser a obra mais famosa de Ursula Le Guin. Venceu os prémios Nebula (1969) e Hugo (1970) e, ainda hoje, é relida e analisada, estando entre os grandes títulos de ficção científica.

Eu já havia lido as cinco narrativas do ciclo de fantasia Terramar, mas nem elas diminuíram a sensação de primeiro encontro com este novo livro. O tom, as descrições, a profundidade, os temas e, claro, a história, são muito diferentes, embora existam lugares-comuns como parte da essência da autora.

Nesta obra, a narrativa poética da fantasia dá lugar a descrições objectivas e menos ornamentadas. Há, portanto, maior simplicidade no estilo e na história o que, no meu caso, conduziu a uma leitura não tão estimulante quanto espectável. Apesar disso, o tema e a abordagem crítica e atenta da autora, expressa pelas personagens, valem por si e a obra acaba por se revelar cativante e inquietante, ainda que nem sempre totalmente convincente.

Este livro apresenta três tipos de capítulos. Num deles, são-nos narrados os desafios que Genly Ai enfrenta em Gethen, um planeta gelado para onde foi enviado. A sua missão é estabelecer um acordo com as nações daquele estranho mundo, incentivando-as a associarem-se à federação interestelar Ecuménio. A tarefa é clara, mas nem por isso simples, e tudo se complica quando Genly se torna um peão na ancestral luta entre Karhide e Orgoreyn, as duas grandes nações de Inverno, o planeta assim apelidado por razões óbvias. A certa altura, este homem alienígena vê-se envolvido num perigoso jogo de corte e política, um jogo de traições. E é um torno da traição e do traidor que muita da acção se desenvolve, permitindo também ao leitor reflectir sobre o assunto.

Quem o arrasta para essa situação preocupante é Estraven, um governante local, atento e patriota. Os excertos do seu diário constituem alguns dos capítulos e permitem-nos compreender melhor, mas não satisfatoriamente, a sua personalidade e a cultura do seu povo. São, também, o registo da longa jornada de fuga que as duas personagens fazem por um longo glaciar, no qual as tempestades, a brancura e a luz se tornam a mão esquerda das trevas, desafiando as suas resistências. No entanto, as mesmas dificuldades acabam por os aproximar, e foi deveras interessante acompanhar o modo como a relação entre eles evoluiu ao longo da obra, até terminar numa comovente prova de amizade, de amor e de confiança.

Para além da acção em torno da missão e peripécias de Genly, a autora presenteou-nos com pequenas histórias, mitos, lendas ou análises daquele mundo tão diferente, com humanos tão diferentes, todas elas admiráveis. Estas permitem-nos conhecer melhor aquele mundo e o modo como as suas particularidades o tornam especial. Talvez o ponto fucral da obra seja algo ainda por referir: o hermafroditismo dos gethenianos. Naquele mundo, todos os indivíduos vivem num estado assexual durante a maior parte do tempo. Apenas quando atingem o kemmer, o estado de capacidade sexual, adquirem características marcadamente femininas ou masculinas, podendo ser, cada um deles, mãe e pai de diferentes crianças. É o grande tópico criativo da obra e aquele que a leva a ser considerada uma referência na ficção científica feminista. Genly acaba por ser o único homem descrito ao longo da obra. Todas as outras principais personagens são andróginas, o que as torna particularmente fascinantes. O modo como os traços femininos se insinuam por entre os masculinos, o modo como a sociedade se organizou com base numa característica que torna todos os Homens iguais, onde todos partilham a mesma perspectiva e as oportunidades, tudo isso faz desta obra um ensaio incrível. Quando lemos “o rei está grávido”, sabemos que nos deparamos com algo promissor.

Gostei da história, gostei do que li. Alguns dos pormenores mais “científicos” pareceram-me um pouco artificiais, mas tudo se enquadra harmoniosamente, graças à mestria de Le Guin. Comparada com outras das suas obras, esta pareceu-me mais insípida, como já referi, mas adorei as ideias – e as fantásticas personagens - e fiquei como uma nova percepção deste género literário. Espero, inclusivamente, ler outros livros sobre o Ecuménio, em breve.

Mais uma prova da grande criatividade da autora.

 A Mão Esquerda das Trevas de Ursula K. Le Guin

  Fátima Andrade, Editorial Presença, 2003

Até Breve!

Publicado por Fábio J. às 15:51

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