O Evangelho Segundo Jesus Cristo foi publicado em 1991. Trata-se de uma das mais polémicas obras de José Saramago, considerada blasfema e abusiva por alguns, os suficientes para levarem o autor ao auto-exílio. Quase vinte anos após a primeira edição, este evangelho é encarado com maior tolerância, mas o que narra continua a provocar surpresa e a gerar opiniões diversas.
Já muito se disse sobre este livro. Não sou, portanto, original, quando afirmo que narra a história e vivência de um Jesus humanizado, com defeitos e virtudes, com dúvidas e convicções, com teimosia e medo, não fosse ele um homem, filho de Deus, mas homem.
A obra começa com uma imagem da crucificação de Cristo, ou melhor, a interpretação que o autor faz dela. Assim, fica desde logo marcado o tom subversivo deste evangelho, ousado e diferente, que não começa com o nascimento, mas com a morte. Ao longo dos capítulos seguintes, Saramago apresenta-nos José e Maria, um jovem casal como quantos outros na Galileia, casados há não muito tempo e que virão a ter um primogénito chamado Jesus. A sua vida tem pouco de especial, mas sendo judeus de há dois mil anos, representam uma cultura, por si só, interessante. Contudo, é evidente que a humanização destas personagens histórias e religiosas, agora reduzidas a simples personagens literárias, constitui o ponto mais relevante da obra.
À medida que a história avança, a narrativa obriga à reflexão, impondo razão e pensamento crítico onde antes havia apenas dogmas. Falo de religião claro está, de cristianismo. No entanto, não me parece que este livro seja ofensivo. Trata-se de uma outra versão sobre a vida dum profeta, com muita ironia e bom humor, mas que não passa duma obra literária e, bem vistas as coisas, até apresenta um tom muito harmonioso.
Mas polémicas à parte, esta é mais uma fascinante obra do Nobel português. Tal como já aqui referi várias vezes, gosto de Saramago na narrativa histórica e, por isso, esta obra agradou-me muitíssimo. O autor é um excelente contador de histórias, também me canso de o dizer, e criou neste livro algumas das imagens mais extraordinárias com que já me deparei numa leitura. Não consigo deixar de destacar o encontro entre Jesus, Deus e Diabo, no centro de um mar, num pequeno barco cercado por nevoeiro. Mas há outras, várias.
Aquele Deus e aquele Diabo do barco merecem, também eles, destaque. Ambos humanizados, ambos muito próximos de Jesus, são duas personagens muito cativantes, sobretudo o Diabo, vai-se lá perceber porquê. Maria, mãe de Jesus, é outra figura de grande poder nesta obra: esposa, mãe, trabalhadora, simples mulher que muito me impressionou pela sua fé, lealdade e coragem. Mas não se esqueça Maria de Magdala e outras personagens incríveis, tenham ou não elas paralelo nos evangelhos bíblicos.
Existem, porém, alguns aspectos que me desapontaram neste romance de 445 páginas, nomeadamente o abandono de algumas histórias secundárias ou o não desenvolvimento de alguns acontecimentos com grande potencial. Talvez por ter gostado tanto do enredo, queria ter lido mais do que o que li…
Seja como for, e como está patente, aconselho este livro, por várias razões, e ainda mais algumas. Trata-se de uma histórica criativa, espirituosa, humana e inspiradora, o que, associado à escrita poderosa e estilo oralizante do autor, se traduz num livro singular.
Mal posso esperar por Caim…
O Evangelho Segundo Jesus Cristo de José Saramago
Editorial Caminho, 1997
Boas Leituras!