Agosto 30 2012

Originalmente publicado no blog "Correio do Fantástico", em 5 de Abril de 2009, como parte do projecto "Grandes Pormenores".

O primeiro volume publicado em português, Elric – Principe dos Dragões, está repleto de elementos criativos dignos de destaque. Um deles é o Barco Que Navega Sobre a Terra e Sobre o Mar, uma embarcação mágica usada por Elric e os seus homens para se deslocarem até Dhoz-Kam e daí resgatarem Cymoril, amada daquele.

Na ânsia de salvar Cymoril, Elric enviou as suas barcas de guerra douradas, os seus homens e os seus dragões à sua procura, mas não obteve qualquer pista. Desesperado, decide invocar o deus Arioch, Senhor do Caos, que revela-lhe o local para onde Cymoril foi levada e que o aconselha a usar o Barco Que Navega Sobre a Terra e Sobre o Mar. Trata-se duma embarcação lendária, usada por um antigo herói de Melniboné. Elric decide, então, invocar Straasha, o deus do Mar. Este conhece o barco pois pertence-lhe, mas pertence também ao seu irmão Grome, deus da Terra. Straasha compreende a angústia do rei albino a cede-lhe o barco. Aconselha Elric a esperar, pois o barco iria até ele. E assim foi…

Na amanhã seguinte, Elric viu algo emergir da floresta “em tons de branco, azul e negro”. Era o seu barco à vela, descrito na seguinte passagem:

A embarcação era alta esquia e delicada. (…) Apesar da construção em madeira, esta não se encontrava pintada, embora exibisse um brilho natural que oscilava entre tons de azul, negro, verde e vermelho esfumado. O aparelho era cor de alga, e os veios nas tábuas polidas do convés faziam lembrar as raízes de uma árvore. As velas pairavam cheias dos três mastros afilados, brancas e leves como nuvens num dia ameno de verão. A embarcação era tudo quanto de belo se podia encontrar na natureza; (…) Numa palavra, toda a embarcação irradiava harmonia”.

O modo como a embarcação se deslocava é, talvez, o mais interessante. No mar, era mais rápida do que qualquer outro barco, em terra…

A embarcação sulcou gentilmente a terra, qual superfície dum rio, e o chão por baixo da quilha ondulou como se transformado por momentos em água. (…) passado o navio, o chão logo tornava ao seu estado sólido normal.

O navio seguia a grande velocidade por declives rochosos e montes cobertos de tojo; abriu caminho através de florestas e cursou imponente pelos prados. Movia-se como um falcão a baixa altitude, que permanece junto ao solo mas se desloca a uma velocidade e precisão incríveis enquanto persegue a vítima, mudando de direcção com um bater de asas imperceptível.

O barco não tinha âncora, e sem maré em terra a única forma de o fazer mover era dizer-lhe que os tripulantes estavam prontos para zarpar. Inicialmente, a condução foi complicada pois, dada a indicação para iniciar o movimento, o barco foi em direcção à muralha da cidade, mas…

Elric foi rapidamente até ao centro da popa onde se encontrava uma enorme alavanca horizontal ligado e a um mecanismo de cremalheira que por sua vez estava ligado a um eixo. Quase de certeza que era o leme. Elric segurou a alavanca como quem segura um remo e forçou-a a um ou dois encaixes. O navio respondeu de imediato…

Pela peculiaridade e criatividade intrínseca, achei este barco um grande pormenor, digno de destaque. A viagem de Elric e, em especial, o Barco Que Navega Sobre a Terra e Sobre o Mar são elementos fundamentais nesta obra de Moorcock, conduzindo o leitor para um mundo surreal e atraente.

Hoje em dia, existem viaturas híbridas que se deslocam em terra e em água, mas a tecnologia ainda não foi capaz de ofuscar este grande pormenor da literatura fantástica.

Fontes: Livro Segundo: Cap. 4, 5, 6 e 7, Elric – Príncipe dos Dragões, de Michael Moorcock, Saída de Emergência, 2005

Publicado por Fábio J. às 15:49

Agosto 29 2012

Originalmente publicado no blog "Correio do Fantástico", em 23 de Dezembro de 2008, como parte do projecto "Grandes Pormenores".

Em A Para Mais Longuinqua, Ursula K. Le Guin conta-nos como o Arquimago Gued e o jovem príncipe Arren iniciam uma demanda por Terramar, tentando descobrir a origem de um mal que assola o mundo. Na sua busca, viajam em mar alto, visitando várias ilhas daquele arquipélago, cada uma com as suas particularidades culturais.

De todos os povos dados a conhecer, há um que me fascina pelo exotismo. E esse povo não tem ilha, não tem terra.

Os Filhos do Alto Mar vivem para lá da Estrema Sul, “para além de qualquer terra ou cheiro de terra, para lá do voo das aves de terra, fora do conhecimento dos homens”. Vivem em jangadas de madeira durante toda a vida, em alto mar do primeiro ao último fôlego.

No Outono, os Filhos do Alto Mar vão a terra, até à Duna Longa, por um breve tempo, onde cortam madeira e reparam as jangadas. É o único momento em que homens, mulheres e crianças pisam terra. Chegado o Inverno, separam-se e cada jangada segue sozinha. Mas na Primavera, voltam a reunir-se em mar alto, numa região chamada Estrada de Balatrane. Aí formam uma autêntica cidade flutuante, como se lê na descrição do primeiro deslumbre de Arren sobre aquele local:

Arren olhou. E viu, para a frente e para norte do barco, algumas muito juntas e outras dispersas até muito longe no mar, jangadas. Tantas jangadas que faziam lembrar as folhas de Outono caídas na superfície de um charco. Erguendo-se pouco acima da água, havia uma ou duas cabinas ou cabanas em cada uma, perto do centro, e várias ostentavam mastros erguidos. Como folhas flutuavam, erguendo-se e baixando muito suavemente sobre a vasta ondulação do oceano. As ruas de água brilhavam como prata entre elas (…)”.

A certa altura, Arren vai até à jangada do chefe daquele povo, a maior da cidade. Não resisto a transcrever também a descrição que lhe é feita, dada a sua especificidade e complexidade.

(..) feita de toros com quarenta pés de comprimento e quatro ou cinco de lado, enegrecidos e amaciados com o uso e o tempo. Havia estátuas de madeira estranhamente esculpidas erguidas junto dos vários abrigos ou recintos disseminados por toda ela e, aos quatro cantos, aprumavam-se mastros altos, coroados por tufos de penas de aves marinhas.

Como podem perceber, trata-se de um pequeno palácio flutuante, com vários espaços. Com um pouco de imaginação, a imagem é incrível.

Vivendo toda a vida no mar, os membros deste povo estão mais do que adaptados à sua forma de viva, nadando como focas. No Verão a cidade está completa e os Filhos do Alto Mar passam de jangada em jangada, reforçam amizades, realizam casamentos e, como por toda a Terramar, celebram a Longa Dança.

 No fim da estação seguem as baleias, para norte, até à Duna Longa, dando início a mais um ano de vida nos mares de Terramar.

O Povo das Jangadas é tido como uma lenda para os povos de Terramar, “uma fantasia sem substância”, mas foi essa fantasia a salvar o Arquimago e o jovem príncipe.

Terramar é um mundo admirável, repleto de surpresas, e este povo é sem dúvida uma delas. Ao deparar-me com ele, fui arrebatado pelo seu exotismo, a sua peculiaridade, a sua adaptabilidade. Por isso destaco este pormenor de A Praia Mais Longuínqua, o terceiro da série Terramar, que não posso deixar de recomendar. Afinal, trata-se de um dos maiores e mais fascinantes universos fantásticos da literatura mundial. Não deixem de ler.

Curiosamente, há alguns meses vi na televisão um documentário sobre um povo asiático com hábitos semelhantes aos que aqui apresentei. As famílias viviam em pequenos barcos, e reuniam-se em épocas específicas. No entanto, o governo daquele país havia considerado ilegal o seu modo de vida, pelo que se trata de uma questão de tempo até àquele povo se extinguir. Bom ou mau?…

Seja como for, os fantásticos Filhos do Alto Mar perdurarão no livro de Ursula K. Le Guin.

A Estrada de Balatrane fica no estremo sudoeste do mapa, para lá das ilhas

A Estrada de Balatrane fica no estremo sudoeste do mapa, para lá das ilhas

Fontes: Cap. 8, A Praia mais Longuínqua, de Ursula K. Le Guin, Editorial Presença

Publicado por Fábio J. às 18:51

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