Philip Roth está entre os grandes escritores norte-americanos dos nossos dias e, depois de ter lido A Mancha Humana, obra de referência publicada em 2001, penso compreender porquê. A par de um enredo cativante e de histórias ricamente entrelaçadas está um estilo magnífico e inconfundível. O suceder de personagens, narradores e perspectivas e a capacidade singular de descrever cada homem e cada mulher sem subterfúgios, aceitando as suas falhas e vergonhas sem reservas, surpreendeu-me mais do que pensava ser possível. Para além disso, há nesta obra uma ética disciplinadora e a preocupação em discutir a complexidade do Homem indivíduo e do Homem social. Por outras palavras, trata-se duma excelente leitura.
A própria história merece atenção: no Verão de 98, a América mostra-se sôfrega por censurar e punir o presidente Clinton, que traiu a esposa e o país. Esta “indignação hipócrita” serve de mote à estória de Coleman Silk, um velho professor universitário que vê a sua carreira arruinada após proferir uma palavra ambígua no momento errado. Esse instante terá consequências devastadoras na sua vida e na dos que o rodeiam.
Um deles é o escritor Nathan Zuckerman, arrastado para a história pela sede de vingança de Coleman. Acabou por tornar-se seu amigo, e é ele, alter ego do próprio Roth, quem nos guia pela narrativa e nos vai apresentando os velhos e determinantes segredos do verdadeiro Coleman Silk, um homem capaz de esconder as suas origens para criar a sua própria realidade.
Os segredos são, por si só, um dos temas da obra. Todos os temos, e é fascinante assistir ao iluminar de cada memória escondida das personagens: para além de Silk, existem outros homens e mulheres que nos são revelados, com franqueza e profundidade. Essas memórias permitem-nos construir a verdadeira identidade de cada um deles, a par daquela que nos é inicialmente descrita. Há neste livro esse cuidado: o cuidado de colocar ao mesmo nível as múltiplas identidades que cada um de nós transporta, seja aquela que nos corre nas veias, a que diariamente tentamos construir, a outra que todos os que nos rodeiam observam ou a verdadeira identidade, demasiado complexa para ser inteiramente compreendida. Com isto se adivinha a qualidade das personagens, tão reais quanto a própria vida.
Graças a essa vertente, a narração facilmente é entregue a essas pessoas, que nos relatam as suas próprias histórias e perspectivas, mas sem nunca nos fazer esquecer a acção principal, antes completando-a e elucidando-a. Isso torna a obra cativante, sem monotonias ou aborrecimentos. Não é que seja perfeita, mas tenho pouco de negativo a apontar.
É contemporânea e actual, e debruça-se sobre aquilo que está para além da mancha humana: os segredos e a tensão das revelações, o desejo e a vontade de arriscar, a certeza de que não existem os bons e os maus, apenas a vida humana em diferentes perspectivas. Uma obra completíssima que, sem dúvida, recomendo.
A Mancha Humana de Philip Roth
Fernanda Pinto Rodrigues, Dom Quixote (edição Biblioteca Sábado, 2008)
Os segredos que Coleman Silk escondeu até à morte foram adaptados ao grande ecrã em 2003, com Anthony Hopkins e Nicole Kidman nos papéis principais. Espero poder vê-lo em breve…
Boas Leituras!